O VALOR DE TODAS AS COISAS
Pt 1
A escrita
Certamente você reconheceu algum dos
logotipos acima, a ideia por trás delas é o mesmo da escrita, transmitir uma
ideia (valor, significado) de algo. Quando alguém fala “azul” nos vem à mente a
representação de onda com variação entre 440-485
nm do espectro da luz, não pensamos em roxo ou vermelho quando alguém fala “azul”,
mas pensamos no azul do céu, de uma safira, de um rio, etc. A escrita serve
para transmitir visivelmente um conceito do mundo das ideias, assim como a fala
serve para descrever oralmente.
O registro mais antigo de escrita que se tem
conhecimento trata-se de um fragmento encontrado em Jerusalém, datando de
aproximadamente do século 14 a.C., escrito em símbolos cuneiformes, no idioma
acadiano. A escrita cuneiforme suméria, por exemplo, era composta por
aproximadamente 2000 símbolos, e a dificuldade em decifrar tal escrita consiste
em que, além do grande número, tais formas poderiam apresentar diferentes
significados conforme o contexto em que fossem inseridos. Outras culturas
também utilizaram essa forma de escrita ou formas semelhantes, como os
hieroglifos egípcios.
A evolução dos símbolos para letras foi um
processo gradual de simplificação da escrita, vejamos um exemplo da escrita
hebraica, que descende do fenício antigo, onde ao invés de ter que desenhar a
cabeça de um touro, começou a ser desenhado apenas o contorno desta, e depois
apenas traços deste contorno, até que estes traços se tornassem a letra
conhecida como א (“Álefe”), a primeira letra do alfabeto hebraico (no
hebraico não há vogais, logo o Álef é uma letra sem som, algo como o nosso “h”),
ao se utilizar tal símbolo não estaríamos apenas utilizando uma letra, tal qual
estamos acostumados a crer, mas introduzindo o valor/sentido/significado de sua
origem ao contexto que estamos criando na escrita. Claro que, para nós, as
letras em si não apresentam valores tão profundos, mas são meios de formarmos
novos “símbolos”, as palavras, que apresentem os valores a que nos referimos.
Portanto ao nomearmos algo ou alguém, não estamos apenas apresentando uma forma
de como tal pessoa será chamada, mas seu nome terá um significado, pelo qual
ele passará a atender, e o fará pelo resto de sua vida.
Portanto, as letras possuem valores, ou ao
menos possuíam e deveriam continuar a possuir, logo, as palavras não são apenas
forma de definirmos algo, mas carregam valores, valores simbólicos, históricos
e culturais, e não devemos negligenciar isso. Os valores simbólicos associados as
palavras, têm a ver com o seu uso dentro da cultura na qual surgiu. Vejamos o
exemplo da palavra “ÁV”, (pai) na língua hebraica, como já mencionei
anteriormente a letra “A” no hebraico surgiu da evolução do símbolo de força,
representado pela cabeça do boi, a letra ”V”, por sua vez, significa tenda,
casa, habitação, logo a palavra pai nesta língua vai muito além da definição de
um membro de um grupo familiar, mas representa a sua função dentro dele, sendo “força
e proteção”, ou seja, o pai nesta cultura, possui o papel de defensor, protetor
e abrigo, por isso o para os judeus, DEUS, é reverenciado como pai, e uma
divindade masculina, por ser protetor de seu povo, obviamente ELE vai muito
além disso, mas deixaremos este tema para um outro texto.
Voltemos à “pai”, veja como essa palavra
possuía um grande valor simbólico dentro da cultura hebraica, que por ser uma
cultura agrícola, utilizava de seus conhecimentos cotidianos para definir os
valores dentro da sociedade local, e é aí que entra o cerne desta nossa
conversa, meu caro amigo leitor, a influência da cultura dentro da produção linguística
de uma determinada época.
Se para a comunidade patriarcal hebraica, de 3000
anos atrás o pai não era apenas o marido e progenitor, mas o protetor e abrigo
de sua esposa e filhos, para os brasileiros do século 21 isso aparenta ser
muito diferente. Esta é a influência cultural dentro do âmbito linguístico, uma
vez que os valores humanos passam a perder sua influencia dentro de uma
sociedade, os valores simbólicos da língua caem em desuso, e as palavras perdem
seus sentidos. Mas se você acha que a palavra pai não possui valores assim tão
distintos entre os hebreus patriarcais e os brasileiros pós modernos, vamos a
um exemplo que seja mais visível, porém tão perigosamente decadente quanto.
Vejamos a palavra amor, essa que talvez seja a palavra mais “poética” da
história, a que foi mais cantada e proclamada, por pessoas em diferentes
culturas, de diferentes tempos, e que até pouco tempo atrás possuía um grande
valor, mas que vem caindo em decadência, devido ao desconhecimento de seu valor
e seu mal uso na linguagem corriqueira.
A palavra amor, originalmente significava o
ápice do sentimento de afeição que um indivíduo sentia com relação a outro, ou
outros, sim, outros, pois amor não se refere apenas ao sentimento entre
amantes. “Amor” deriva do verbo “amar”, que por sua vez, deriva da expressão
indo europeia “AM-A”, que gerou palavras relacionadas ao crescimento de uma
criança, tais como “mamar”, “mãe”, “ama”. No grego, por sua vez, há quatro
palavras que ao serem traduzidas para o português são definidas como “amor”,
seriam elas “storge” o amor fraternal, o amor familiar; “philia” o amor entre
amigos, o amor que há quando pessoas dividem interesses em comum; “eros”
(talvez o mais conhecido dos quatro) amor romântico, muitas vezes relacionado
ao casal, envolvendo sexualidade e por último mas definitivamente não menos
importante, “ágape” o amor incondicional, o amor doação que não busca ganho
próprio como os demais descritos, mas satisfaz-se com o ganho do outro. Veja
que todos os quatro falam de um sentimento semelhante, porém distintos em graus
e interesses, mas que ao serem traduzidos dentro de um texto, como a bíblia por
exemplo, são definidos apenas como “amor”, e o pior é que dentro da nossa
língua, se foi ainda mais longe, o amor deixou de ser esse “verbo” esse
sentimento ativo e pulsante - que move o mundo e as almas, que rompe o tempo e
o espaço, que eleva o ambiente familiar, que une espíritos irmãos na divisão de
interesses, que eterniza os apaixonados e que fez com que o Filho de DEUS
viesse ao mundo e morresse por nós - e passou a substituir uma palavra,
sentimento menor e menos “humana”, nas conversas diárias, nas mensagens e
textos corriqueiros, amor passou a substituir o “gostar”, pois o “gostar” já
havia perdido o seu valor, e precisava de um substituto. O quê? Você não
concorda comigo? Acha que estou exagerando né? Risos kkkkkkk... Vejamos então,
você nunca disse amar um alimento, filme, série, lugar ou atividade? As
afirmações “nossa eu amo esse sabor”, “amo pizza”, “amo coca-cola”, “amo rock”,
são realmente estranhas a você? A mim, infelizmente não o são. Há ainda uma
outra utilização do termo amor, e esta, é lamentável ao quadrado, seria quando tal
palavra passa a significar o ato sexual, sinceramente, eu sinto vontade que
abrir um buraco no chão e sumir quando alguém fala que “FEZ AMOR”. Suspiros! A
substituição dos valores de “gostar” para a palavra “amar”, acarretará uma
outra transferência de valores, pois precisamos de uma palavra para descrever
um sentimento que seja maior do que o “novo amar”, então iremos rebaixar a o
verbo “adorar” ao status de “amar”, logo “eu adoro tal pessoa” “adoro estar com
você”, “adoro comer isso ou aquilo”, etc... E assim seguiremos, ignorando os
valores e significados das palavras e empobrecendo a linguagem, palavra após
palavra, iremos rebaixando os significados, pois, uma vez que não possuímos
mais valores elevados, nossa linguagem deve nos seguir rumo ao limbo.
Veja bem, há uma grande diferença entre
evolução linguística e a alteração de valores das palavras, a primeira busca o
aperfeiçoamento da linguagem, enquanto a segunda apenas se vale da
desinformação a creca dos valores desta, e busca a seu bel prazer lhe adicionar
novos sentidos. Isso me faz lembrar “a reforma da natureza” de Monteiro Lobato,
onde a travessa Emília decide “reformar” a natureza, de acordo com o que ela
acreditava ser “melhor”, o resultado? Uma tremenda confusão, é claro. Pássaros
com ninhos nas costas, árvore de abóboras, insetos gigantes, e tantas outras
maluquices que apenas a imaginação de Emília poderia criar, mas o que nos vale
aqui é a lição, não podemos simplesmente sair atribuindo novos sentidos as
coisas, sem levar em conta a sua função, o seu “lugar no mundo”, quando
ignoramos o sentido das coisas, tudo passa a perder o sentido, a própria
existência perde a razão.
Sempre me recordo de um ocorrido da minha
infância, quando furioso com um de meus sobrinhos, quase da minha idade a quem
minha mãe criara, eu proferi uma palavra que havia aprendido no colégio, obviamente
um palavrão, mas eu não fazia ideia de seu significado, felizmente minha mãe me
explicou o que eu estava dizendo, kkkkk, e eu não repeti o feito. Recentemente
um colega de um trabalho, estava todo animado utilizando uma palavra que
aprendera não sei onde, um menino, praticamente, e todo animado falou que iria
fazer algo “na brotheragem” para um de seus amigos, obviamente eu ri muito, mas
depois lhe expliquei o significado da palavra e ele não a utilizou mais. Mas a
questão aqui é, não podemos simplesmente ir utilizando palavras de acordo com o
que imaginamos que signifiquem, e a culpa disso é de que? Da nossa preguiça e
de um sistema de ensino falho, a boa leitura tem sido abandonada, os grandes
clássicos têm sido deixados de lado por serem “difíceis de entender”, as novas
gerações não são incentivadas a ler as principais obras literárias da
humanidade, e quando o fazem por alguma curiosidade logo desistem, pois na
grande maioria das vezes tal leitura deve ser feita na companhia de um
dicionário, e quem hoje se dá ao trabalho de consultar o dicionário? Logo não
há uma evolução linguística, mas um retrocesso.
A solução? Primeiramente devemos tornar o
hábito da leitura um hábito popular, mas não qualquer leitura, devemos voltar as
grandes obras, às epopeias, aos romances e tramas intermináveis dos grandes
nomes, voltemos à Machado de Assis, Shakespeare, à Saramago, Dostoiévski, a
humanidade produziu grandes obras, grandes histórias, e por que não nos
interessarmos pelos grandes escritos filosóficos? Platão, Aristóteles, Schopenhauer,
Bauman, as escritas religiosas, os Vedas indianos, a filosofia egípcia do Hermetismo,
literatura judaico-cristã? Há grandes verdades ao nosso alcance, com a internet
temos mais acesso ao conhecimento literário, científico, espiritual do que nossos
antepassados jamais teriam sonhado, porém desperdiçamos tudo em troca de
migalhas do entretenimento. Em segundo lugar, devemos conhecer a nossa língua e
sua história, a língua portuguesa falada no Brasil, em nosso momento histórico,
é um grande e rico compilado das diversas culturas que moldaram a nossa
história, não negligenciemos isto. E em terceiro lugar, devemos retornar ao
conhecimento das coisas além da aparência, conhecer a “alma” que possuem. O mundo
não é uma casca oca. A matéria não é o fim de todas as coisas, pois “há mais
coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha a nossa vã filosofia”.
Continua...
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